Folha de S. Paulo - Pandemia tirou mundo de rota suicida do sistema econômico tradicional, diz Nobel da Paz
Muhammad Yunus afirma que crise é oportunidade para livrar humanidade de modelo que cria e sustenta pobreza
Érica Fraga
O vencedor do Prêmio Nobel da Paz Muhammad Yunus vê a crise causada pelo coronavírus como uma oportunidade para o mundo redesenhar o sistema econômico tradicional, que, segundo ele, havia colocado a humanidade em uma rota suicida.
“Tínhamos acabado de começar a década da última chance”, disse o economista em entrevista por e-mail.
Segundo Yunus, o aquecimento global atingiu seu último estágio, e o aumento da desigualdade de renda se transformou em uma “bomba-relógio de raiva e desconfiança”.
Nascido em Bangladesh, país pobre da Ásia, Yunus ganhou notoriedade ao criar, em 1976, o Grameen Bank, instituição dedicada a emprestar recursos a pequenos empreendedores de baixa renda.
Por essa iniciativa, recebeu a alcunha de “pai do microcrédito” e foi laureado - ao lado do banco que fundou - com o Nobel da Paz em 2006, pelo seu papel no combate à pobreza.
Depois disso, uma tentativa de entrar para a vida política colocou Yunus em choque com Sheikh Hasina, atual primeira-ministra de Bangladesh. O economista preferiu não comentar o tema na conversa com a Folha.
Afastado do Grameen desde 2011, Yunus, que fará 80 anos em junho, dedica-se a outros empreendimentos, inclusive no Brasil, onde é sócio da Yunus Negócios Sociais.
O economista disse que seu sonho no país é criar um empreendimento social numa zona “desmilitarizada de intenções agressivas” na Amazônia.
Para Yunus, o mundo espera que o Brasil exerça uma maior liderança em assuntos globais.
Recentemente, participou, ao vivo de Bangladesh, do debate “No going back taks”, promovido pela instituição no Brasil para discutir o mundo pós-pandemia. O evento foi acompanhado por 6.000 pessoal, segundo os organizadores.
O sr. escreveu recentemente que a crise do coronavírus é uma oportunidade para que o mundo se reinvente. O que precisa ser reinventado?
Antes de essa crise começar, a contagem regressiva para o fim da sobrevivência humana neste planeta já havia começado. Tínhamos acabado de começar a década da última chance. O aquecimento global atingira seu último estágio. A concentração de riqueza chegou a um nível tal que tornou o mundo uma bomba-relógio de raiva e desconfiança.
A inteligência artificial ameaçava criar desemprego em massa. Nós estávamos nos aproximando rapidamente da linha final. A pandemia nos salvou de tudo isso, levando o sistema à paralisia. Criou uma tremenda oportunidade para nos distanciarmos da rota suicida dos dias pré-coronavírus e criarmos um novo mundo livre de todos esses perigos.
O que sugiro é a criação de um novo tipo de negócio que contrabalance o antigo. Um modelo que seja exclusivamente dedicado a solucionar os problemas das pessoas e que não gere lucro para seus donos. É o que chamamos de negócio social.
Mas houve desenvolvimentos positivos também nas últimas décadas?
A tecnologia mudou tudo e estará por trás das mudanças do futuro. Mudou os jovens, tornando-os mais independentes e empreendedores. Graças à tecnologia da comunicação, as distâncias desapareceram. A inteligência artificial está mudando os sistemas de saúde dramaticamente.
Mas a tecnologia também desempenha papeis negativos. Tem ajudado a falsidade a competir com a verdade. A inteligência artificial tem ameaçado a própria existência humana neste planeta. Continua a viabilizar a produção de armas de destruição em massa.
No balanço geral, o mundo vinha se tornando pior?
Podemos fazer uma lista impressionante de coisas que conquistamos para o planeta e as pessoas. Evitamos o holocausto nuclear e a Terceira Guerra Mundial. Conquistamos o espaço. A economia global cresceu em ritmos sem precedentes. Houve conquistas impressionantes na saúde e na educação. A tecnologia transforma o mundo rapidamente. Todas essas conquistas ainda vão longe.
Mas, enquanto nos orgulhamos delas, simultaneamente, temos de reconhecer que empurramos o mundo ao limite de sua sobrevivência. Todas essas conquistas se tornam sem sentido diante de todas as ameaças. Levamos o mundo a um estágio em que nossos adolescentes são obrigados a nos culpar por privá-los da vida deles.
Uma questão que surge naturalmente é: quem nos dá o direito de destruirmos o futuro das nossas futuras gerações? Não temos resposta aceitável.
Não podemos negar que esse feito é nosso. Mas o ponto importante é que podemos desfazer isso e criar um mundo de felicidade perpétua. É uma questão de escolha. Mas não estamos fazendo essa escolha. Por quê? Isso me intriga.
A desigualdade de renda aumentou, mas a pobreza caiu bastante. Isso é positivo?
Claro que sim. É uma das conquistas mais gloriosas. Não devemos minimizar suas importância. Milhões de pessoas ultrapassam a linha da pobreza em tempo recorde, mas elas continuam muito próximas dela. Sua vulnerabilidade aparece novamente agora durante a pandemia da Covid-19. De repente, elas voltam para baixo da linha da pobreza.
Esse sobre e desce não pode ser uma solução sustentável. Elas não merecem isso, para começar. São seres humanos tão criativos como todos os outros. A pobreza não foi criada por elas. É o sistema econômico que cria e sustenta a pobreza. A pobreza torna a injustiça da máquina e econômica visível. Ela é facilmente visível porque é muito cruel.
Como a crise do coronavírus incentiva a reinvenção da economia?
Esta crise criou uma oportunidade enorme porque derrubou o sistema atual. Quando uma cidade grande é, inesperadamente, atingida por um terremoto e é totalmente destruída, ela cria a oportunidade para reconstrução a partir do zero. Devemos construir uma cidade como a antiga ou desenhá-la de forma totalmente diferente? É exatamente essa pergunta que precisamos nos fazer agora.
A crise do coronavírus cria uma oportunidade, não um incentivo. O incentivo vem da nossa experiência do mundo pré-corona, quando debatíamos quanto tempo o mundo ainda tinha antes de atingir sua linha final. Era o incentivo para mudar drasticamente e escapar do desastre iminente, que se torna mais forte cada dia. Mas havia poucas oportunidades. Agora, a crise cria uma megaoportunidade.
O sr. já identificou mudanças positivas na sociedade desde a eclosão dessa crise?
Nosso principal objetivo é redesenhar o motor econômico que nos trouxe a esse ponto. Temos de criar um mundo que garanta zero emissão líquida de carbono, zero concentração de riqueza, zero desemprego.
No processo de redesenho, temos de fazer o seguinte: o novo sistema começa com mudanças conceituais, fazendo todo negócio que visa ao lucro se tornar social e ambientalmente responsável. O lucro a todo custo não será permitido. O sistema novo introduzirá o negócio social.
É quase o inverso dos negócios convencionais. Em vez de maximização dos lucros, ele trabalha com zero lucro pessoal. É dedicado a solucionar os problemas das pessoas. Esses negócios sociais têm de estar no centro do nosso novo mundo. Diremos aos jovens que eles não são caçadores de empregos, mas criadores de empregos, empreendedores.
O novo sistema redesenhará todo os sistema financeiro, tornando-o, majoritariamente, baseado em negócios sociais, garantindo que todos os serviços financeiros estarão disponíveis aos 50% dos homens e mulheres da parte inferior da pirâmide social.
Todos os desempregados receberão ativos para começar suas empresas. O sistema educacional será redesenhado para preparar os jovens para começar suas vidas como empreendedores.
Como os governos podem ajudar nesse redesenho?
O papel dos governos é inspirar e mobilizar os indivíduos e envolver os negócios na construção de outros negócios sociais focados em solucionar os problemas das pessoas; ajudar a criar empreendedorismo entre os jovens; dar apoio legal e regulatório. Sua principal responsabilidade será remover barreiras legais e regulatórias para a criação de novas instituições financeiras e novos negócios.
Com base em sua experiência com a Yunus Negócios Sociais no Brasil, quais são as principais barreiras à inovação do país?
Yunus Negócios Sociais no Brasil enfrenta os mesmos problemas que outros países. Os sistemas financeiros são construídos para propósitos diferentes dos nossos. O sistema legal, institucional, não foi desenhado para atender os 50% da base, aqueles que realmente precisam de acesso a linhas de crédito para suas iniciativas. Mas não desistimos. Sabemos que o futuro está do nosso lado.
Uma de nossas conquistas no Brasil indica isso. Com o apoio do escritório Mattos Filho Advogados e sua sócia Marina Procknor, nosso time criou um fundo de investimentos inovador que serve exclusivamente a negócios sociais. Sete investimentos já foram feitos, em setores como educação, reflorestamento e construção.
Continuamos a perseguir nosso projeto dos sonhos no Brasil, que visa a criação de uma empresa social brasileira para transformar um pedaço grande de floresta amazônica numa área protegida de incêndios e outros ataques, criando qualidade de vida para as famílias que morem nessa área. Convidamos empresas brasileiras e internacionais a juntarem-se a nós nesse projeto.
Nosso desejo é fazer desse negócio social uma “zona desmilitarizada” em que todos trabalhem juntos por um propósito comum, não importa o quão antagônicas sejam suas ideias fora dela. Todas as armas e intenções agressivas seriam deixadas de fora dessa zona. Precisamos de ajuda de vocês, brasileiros, para identificar uma área apropriada para esse projeto.
Que aspectos positivos vocês destacariam com base na experiência no Brasil?
Brasil se tornou um poder econômico e social, se transformou muito rapidamente. Ganhou respeito global por suas conquistas, se tornou um líder em transformação social. O mundo acompanha os passos do Brasil com maior interesse. Debates políticos e sociais do Brasil são de grande interesse para o mundo.
Mas eu tenho a impressão de que o Brasil não está muito ciente de sua influência global. Espero que se torne mais envolvido com o resto do mundo e ofereça a liderança que o mundo espera de vocês. Isso beneficiará ambos os lados.
*Entrevista publicada originalmente em 31 de maio de 2020 pela Folha de S. Paulo.