Valor Econômico - Retorno ao mundo pré-pandemia é suicídio, diz Nobel Muhammad Yunus
Retorno ao velho mundo é como suicídio, diz Muhammad Yunus, para quem é necessário mudar a economia e resolver problemas sociais
Por Diego Viana
A economia pós-pandemia de covid-19 deve ter critérios para decidir os tipos de negócio que serão incentivados e os que serão excluídos. “Corporações de combustíveis fósseis serão barradas, mas empresas de energia renovável serão bem-vindas”, exemplifica o economista bengalês Muhammad Yunus, de 79 anos. Conhecido como “banqueiro dos pobres”, o criador do conceito de microcrédito e fundador do banco Grameen enxerga na pandemia um episódio do qual “não se pode voltar atrás”.
Desde que a pandemia levou ao fechamento de cidades mundo afora, Yunus vem se dedicando a difundir o Novo Programa de Recuperação (NPR), com objetivos amplos. Trata-se de transformar “todo maquinário da nossa economia”, diz, para pensar em termos de “negócios sociais” - conceito que desenvolveu para designar iniciativas criadas a fim de resolver problemas sociais específicos, que sejam autossustentáveis e sempre reinvistam seus lucros na própria atividade.
Para o Brasil, o “banqueiro dos pobres” tem planos ambiciosos que incluem a criação de um negócio social para administrar uma vasta área da Amazônia, mantendo a floresta de pé e evitando incêndios. Segundo o economista, essa área seria uma “zona desmilitarizada” que privilegiaria o empreendedorismo da população local. O investidor apresentou suas propostas em uma transmissão via internet no seminário “No Going Back Talks”, no mês passado.
O banco Grameen, que Yunus fundou em 1983 em Bangladesh, concede empréstimos sobretudo a mulheres para começarem a desenvolver pequenos empreendimentos. O conceito de “negócios sociais” foi desenvolvido a partir dessa experiência. Em 2006, Yunus recebeu o Prêmio Nobel da Paz graças ao trabalho do banco. Sua empresa Yunus Social Business Global Initiatives, fundada em 2011, realiza consultoria e investe em projetos dedicados aos negócios sociais em diversos países. A filial brasileira Yunus Negócios Sociais, foi fundada em 2013, com criação de um fundo de investimento.
Valor: Desde que recebeu o prêmio Nobel, o senhor tem promovido os negócios sociais mundo afora, começando parcerias em países como França, Alemanha e Japão. Como foi a recepção do projeto desde então?
Muhammad Yunus: O conceito de negócios sociais têm recebido atenção encorajadora. Muitos novos negócios sociais estão sendo criados. Cada vez mais líderes empresariais participam de nossos eventos globais anuais. Mais CEOs estão iniciando debates conosco. O mundo acadêmico também está dando respostas positivas. Já são 84 universidades no mundo a abrir Centros Yunus de Negócios Sociais,, oferecendo cursos sobre o tema. A França tomou a decisão de fazer da Olimpíada 2024, em Paris, uma Olimpíada dos negócios sociais. O mundo dos esportes, pouco a pouco, vai contribuir para resolver problemas em seu entorno.
Valor: Como avalia o cenário dos negócios sociais no Brasil?
Muhammad Yunus: Muito animador. Montamos um fundo de investimentos inovador, que serve exclusivamente os negócios sociais. Esse fundo já fez sete investimentos, em setores como educação, gestão de resíduos, reflorestamento e habitação. Tenho o sonho de implementar um projeto no Brasil: criar uma empresa de negócios sociais que transforme um bom pedaço de floresta amazônica, digamos 5 mil km², em um espaço protegido que gere qualidade de vida para seus habitantes, com educação para crianças, empreendedorismo para os desempregados, serviços financeiros, saúde e tecnologias de comunicação para conectá-los com o mundo. Vamos convidar empresas brasileiras e internacionais a unir esforços com essa empreitada amazônica. Queremos que ela seja uma “zona desmilitarizada” de negócios sociais, onde todos trabalharemos juntos por um propósito comum, não importa quão antagônicos sejamos do lado de fora.
Valor: Como o conceito de negócios sociais causa impacto nas preparações para a Olimpíada de Paris?
Yunus: Paris leva a estratégia de negócios sociais muito a sério, mobilizando forças de todos os lados. Quando se faz algo novo, não há nenhum caminho predeterminado para seguir ou exemplo a estudar. É difícil. E tem batalhas constantes contra os beneficiários do modo tradicional de organizar uma Olimpíada, que se sentem privados de poder. Até a pandemia, tudo estava dentro do cronograma. O que possa dizer agora é que o mundo dos esportes, como um todo, está se inspirando nos preparativos da Olimpíadas de Paris.
Aprendemos uma lição importante com a pandemia: seu eu não te proteger, eu mesmo permaneço desprotegido”, afirma Yunus
Valor: Após a grande expansão do microcrédito na década de 2000, o conceito chamou atenção de muitos estudiosos e passou a sofrer críticas, algumas bastante severas. Alguma dessas críticas teve impacto no modelo de negócios?
Yunus: Ao fazer algo drasticamente diferente dos modos tradicionais de agir, há sempre críticas. Algumas justas, outras, injustas. Quando a ideia de serviços financeiros sem colaterais conquistou a imaginação do mundo, foi copiada por toda parte, desordenadamente. Alguns fizeram bem, outros nem tanto, mas todos diziam estar seguindo o banco Grameen. Houve boas imitações e algumas abusivas, voltadas para a ganância. O microcrédito surgiu como negócio social buscando resolver problemas de mulheres pobres. Muitos fizeram microcrédito para maximizar lucros em cima dos pobres, particularmente mulheres. Foi usada como cobertura respeitável para uma agiota agressiva. Agiotas tradicionais, odiados por suas comunidades, passaram a se dizer programas de crédito, passando imagem errada. Os programas genuínos fazem trabalho excelente.
Valor: O gênero é um aspecto importante do Branco Grameen, já que a maioria dos empréstimos é destinada às mulheres. Como é o papel do gênero no Novo Programa de Recuperação?
Yunus: Logos nos primeiros anos do meu trabalho com microcrédito, nos anos 1970, percebi que quase 99% dos empréstimos eram dados a homens nos bancos convencionais de Bangladesh. Comentei com um amigo banqueiro, que me achou tolo, dizendo que todos sabem que mulheres não se interessam por bancos. Não me convenci. Pensei que o serviço era deliberadamente negado a elas. Projetei o banco Grameen para ser não só acessível aos mais pobres, mas às mulheres pobres. E, de fato, ainda hoje, 97% dos empréstimos vão para as mulheres. Para entrar no mundo novo, vamos ter que colocar as mulheres à frente em nosso pensamento nossa prática. É importante que, primeiro, “pessoas” signifique “mulheres”, para nos forçar a pensar nas mulheres primeiro. Só depois devemos falar dos homens. Se não tomarmos essa atitude, os homens vão preencher todos os espaços de políticas públicas, de alto a baixo. Posso garantir.
Valor: O senhor se queixava de que raramente os bancos adotam o microcrédito e chega a dizer que ele permanece como uma “mera nota de rodapé”. O que falta para que o microcrédito seja mais disseminado?
Yunus: Infelizmente, ainda é uma nota de rodapé. Mas, quando começarmos a caminhar na direção de um novo mundo, o microcrédito de negócios sociais vai ter uma papel central e vai influenciar o redesenho do sistema financeiro como um todo. Enquanto os banqueiros permanecerem no modo de maximização do lucro, vão achar difícil incluir o microcrédito em seus serviços. Um grande apoio tem sido a iniciativa Economia de Francisco, da Igreja Católica. Quando o Vaticano endossa um sistema de crédito para mulheres pobres, desenvolvido por uma pessoa de outra fé, envia uma mensagem muito convincente para seus fiéis e além.
Valor: O senhor lamenta a perda de fé na humanidade e manifesta a intenção de restaurá-la por meio do empreendedorismo e dos negócios sociais. Quais são os elementos da perda e da restauração?
Yunus: Nossa teoria econômica se sustenta em versão reduzida do humano, apresentado como indivíduo econômico, diferente do humano real. A teoria expulsou a humanidade das pessoas para criar o homem econômico. Assim que aceitamos essa teoria, começamos a nos transformar nesse personagem. A teoria deveria ser capaz de refletir a realidade, fazer-nos entender o que fazemos e por quê. No caso da teoria econômica, mudamos nosso comportamento para caber na teoria. Mas a humanidade não desapareceu dos humanos. Ela se tornou uma parte sem uso dentro de nós. Para trazê-la de volta, tudo que precisamos fazer é substituir o homem econômico pelo ser humano real. Os negócios mudam imediatamente, tornam-se algo humano, em vez de movidos por robôs fazedores de dinheiro. A antiga categoria busca maximizar o lucro pessoal a qualquer custo. A nova categoria busca resolver os problemas das pessoas, sem lucro pessoal. Este é o negócio social, veículo poderoso para colocar a humanidade em ação no mundo econômico.
Valor: Como o senhor interpreta as medidas anunciadas até agora para reagir à pandemia?
As medidas têm seguido a velha receita: reativar o maquinário econômico fechado na crise. Essa receita envolve enormes pacotes de resgates para empresas, particularmente instituições financeiras. É uma tentativa de nos levar de volta a onde estávamos antes da pandemia. Mas a volta intencional ao velho mundo é como cometer suicídio. Antes de sermos atingidos pelo coronavírus, o mundo estava à beira do desastre. O ataque do coronavírus, pelo menos, desmontou o nosso mecanismo econômico e nos interrompeu logo antes de pularmos o abismo. Agora temos a chance de tomas medidas que nos salvem da aniquilação. Já não há mais razão para voltar à situação anterior. “Não tem volta” deveria ser nossa decisão firme, sabendo que a volta é suicida. É preciso lembrar os líderes políticos o que significa voltar atrás. Significa aquecimento global, tornando o mundo inabitável em poucos anos. Significa concentração extrema de riqueza, como uma bomba-relógio. Significa desemprego em massa, sobretudo com a inteligência artificial.
Valor: Como chegar à cooperação necessária para implementar seu programa de recuperação? Na economia globalizada, não basta um país decidir investir em negócios sociais.
Yunus: Assim que tomarmos a decisão firme de construir um novo mecanismo que nos leve a um mundo novo, temos que nos libertar de antigos hábitos de pensamento. O foco deverá estar na construção de instituições e políticas que resolvam os problemas das pessoas, criando oportunidades para jovens começarem a vida como empreendedores, salvando-os da indignidade e da incerteza de estarem à mercê de empregadores. Devemos centrar foco em construir negócios sociais para saúde, finanças, educação, tecnologia, água moradia, saneamento etc. Os problemas humanos são os mesmos ao redor do mundo, em países ricos e pobres. Como novos mecanismos econômicos, os países poderão colaborar. Hoje não é assim porque temos objetivos diferentes. O mundo compete para acumular riqueza. Nessa corrida, só ganho se você perde. Aprendemos uma lição importante com a pandemia: se eu não te proteger, eu mesmo permaneço desprotegido.
Valor: Como o senhor avalia as propostas de Green New Deal nos EUA e na Europa?
Yunus: Há consenso universal para combater o aquecimento global, com várias versões de programas para atacar o problema, cada uma com um cronograma. Todos levariam mais de uma década. A pandemia simplificou a questão, permite acelerar. Tudo que precisamos, agora, está alinhado no ponto de partida, o que facilita a coordenação. Esforços que demandavam décadas agora podem ser completados em anos. Quando tudo entra em colapso, temos a chance de nos livrar de negócios errados. Podemos estabelecer critérios para definir se um mercado respeita o clima, antes de deixá-lo entrar no mundo novo. Combustíveis fósseis serão barrados, e a energia renovável será bem-vinda. Governos estarão ávidos para oferecer a essas empresas condições de expandir seus negócios.
Valor: Instrumentos como a renda básica universal, que têm sido cada vez mais citados como solução para ocasiões como a atual, são uma ideia a considerar?
Esse é um conceito muito apropriado para a situação da covid-19. As pessoas perderam emprego e renda em massa. Ao mesmo tempo, os governos não podem relaxar o isolamento para permitir que retornem à vida econômica normal. Alguns líderes políticos exigem a retirada das medidas de isolamento para voltar à atividade econômica. Isso introduz o falso debate: vida versus subsistência. A vida não pode estar sujeita a opiniões, nem ser comercializada. Ao permitir que alguém decida ser desprotegido, outro cidadão é privado de sua proteção. A verdadeira solução na pandemia não está em abrir a economia e causar sérios riscos à vida de muitos. A solução é introduzir a renda básica universal.
Valor: E depois da pandemia? Seria o caso de implementar a renda básica universal?
Yunus: Eu me oponho à renda básica universal como política geral. Trata o sintoma, em vez da causa, o mecanismo econômico mal desenhado, que absorve toda a riqueza do andar de baixo e a concentra nas mãos de um punhado de pessoas. Devemos programar corretamente o aparelho e, com isso, não vai ser preciso mexer com a renda. Cada pessoa tem uma capacidade tremenda de cuidar de si próprio e sua família, contanto que a máquina econômica lhe dê a chance de liberar a sua capacidade criativa. O problema está muito mais no fato de que a economia pressupõe que as pessoas devem buscar empregos, quando na verdade as pessoas sempre nascem empreendedoras. Além disso, os argumentos em defesa da renda básica universal ficam pela metade. Afirmam que a renda abaixo de um certo nível é errada. Para ser consistentes, também deveriam argumentar que a renda acima de um certo nível é errada. Para completar o argumento, deveriam promover uma renda universal justa, em vez de básica.
Valor: Uma preocupação, antes da pandemia, era o crescimento do populismo que muitos países têm vivenciado. Isto pode comprometer projetos de negócios sociais?
Yunus: O populismo é uma maneira de expressar as frustrações da população em linguagem política. Quanto mais frustração, mais as pessoas vão buscar soluções populistas, por meio de plataformas políticas. Gradualmente, isso se torna violento, já que canaliza emoções. O populismo vai continuar crescendo enquanto ela piorar. Apoiadores de líderes populistas não põem a culpa na concentração de renda, mas enxergam algumas de suas consequências: faltas de empregos e baixos salários. Líderes populistas prometem empregos e salários melhores. Meu conceito de negócios sociais concorda sobre os sintomas, mas prevê soluções bem diferentes. Redesenhar a máquina econômica, para parar o processo de concentração da riqueza. Muitos têm que trabalhar para poucas pessoas, as únicas com direito ao excedente produzido pelas empresas. Os empregados, a rigor, são os mercenários da concentração de renda. Quanto mais pessoas escolherem ser empreendedoras, menos concentração de renda haverá. No caso de inteligência artificial tomando os postos de trabalho, isso levaria um grau impensável de concentração de renda.